RIO DROGA DE JANEIRO - 1a. parte
QUEM TEM A DROGA TEM O PODER
Ricardo Kelmer - 2005
"A gente não torce mais para a polícia acabar com as quadrilhas pois a gente sabe que isso é impossível. A gente agora torce é para que apenas uma quadrilha se estabeleça no lugar onde a gente mora pois é só assim que a gente tem um pouco de paz. De preferência a quadrilha que tem apoio da polícia."
Quem disse isso foi uma amiga minha que mora no Morro do Vidigal, favela carioca da zona sul, um dos lugares com a vista mais deslumbrante do Rio de Janeiro. Ela lamentava a guerra entre quadrilhas de traficantes que há meses violenta o dia-a-dia de sua comunidade e obriga os moradores a conviver com tiros e explosões na madrugada, enfrentamento de quadrilha com quadrilha e quadrilha com polícia, mortes, toque de recolher imposto pelos bandidos...
Quem tem a droga tem o poder - esta é a lógica cruel do Rio de Janeiro atual. Junte-se a isso pobreza, despreparo das forças de segurança, descaso dos governantes, indiferença das elites, interesses comerciais, corrupção em todos os poderes e, também, é claro, a existência de um ávido mercado consumidor e pronto, você terá um poder paralelo capaz de se infiltrar em todos os níveis da sociedade, corroer suas bases, estabelecer suas próprias leis e tornar a vida do cidadão um inferno.
Os criminosos querem poder, muito poder, quanto mais melhor. Para isso precisam de muito dinheiro. Droga é um negócio perigoso mas é bastante lucrativo pois há muitos consumidores, não há qualquer tipo de fiscalização e não se paga imposto. Os maiores pontos de venda ficam nas favelas pois lá o Estado se recusa a ir. Lá as quadrilhas são o Estado: elas fazem as leis, fiscalizam seu cumprimento e punem os faltosos. Antigamente o traficante do morro era nascido no morro e era um romântico pois atuava como um benfeitor da comunidade abandonada pelo Estado, usando seu poder para amenizar as dificuldades de sua gente. Hoje não é mais assim. O negócio da droga é para profissionais e não para Robin Hoods românticos. Os chefões não estão interessados em melhorar a vida de ninguém mas em obter mais poder e se defender das outras quadrilhas que cobiçam seu território. E o cidadão? Este fica lá, impotente e apavorado no meio do fogo, sem ter a quem recorrer.
Se o problema ficasse restrito às favelas, as elites não estariam nem um pouco preocupadas. Mas a violência gerada pela bandidagem desceu o morro e alcançou a classe média e os ricos. Não há mais onde se esconder. Carro blindado, vidro escuro, condomínio fechado, cerca elétrica, câmeras de vigilância - a sociedade gasta fortunas para se proteger mas um dia a violência descobre uma brecha e ataca, nos transformando em mais um número das estatísticas. As quadrilhas, cada vez mais ousadas, exibem seu poder à luz do dia, decapitando o inimigo, tocando fogo no corpo e largando-o nas ruas, perto do metrô, para que todos entendam de uma vez quem é que manda no pedaço.
Minha amiga não quer guerra onde ela mora. Ninguém quer. O Estado deveria proteger os cidadãos mas entra ano e sai ano, entra década e sai década e isso não acontece. O que sobra ao cidadão? Apenas torcer para que a quadrilha que manda no bairro não seja atacada por outra quadrilha. A coisa chegou a tal ponto que é melhor viver na paz do tráfico que na guerra do tráfico, veja só o absurdo. Já que o narcotráfico não vai acabar nunca, melhor se entender com quem realmente manda no pedaço. E esse alguém não é a polícia. Nem o governador.
E por que diabos as forças de segurança não agem? Arrá! Chegamos a um segundo nível da questão. A polícia é incapaz de conter a força dos traficantes não exatamente porque são muitos e bem armados, mas porque os bandidos possuem conexões com a própria polícia, as forças armadas, políticos, juízes e governantes. Até mesmo com empresários e igrejas. Como derrotar algo tão poderoso?
RIO DROGA DE JANEIRO - 2a. parte
OS DISCRETOS SÓCIOS DO NARCOTRÁFICO
Ricardo Kelmer - 2005
Todo mundo está careca de saber que há policiais que são pagos pelos próprios bandidos, ganhando muito mais que seu baixo salário na corporação. O narcotráfico paga, e muito bem, a advogados, juízes, políticos, religiosos, empresários e, não duvide, até a governantes que fazem acordos com as quadrilhas. Todos são elos na longa rede do narcotráfico e todos lucram com a ilegalidade da droga. São sócios discretos da bandidagem e para eles o caos social é financeiramente vantajoso, nada de mudanças, por favor.
É tanta a dinheirama envolvida que as ideologias, o bom senso e a consciência ficam em segundo plano. Que se foda o mundo! - pensa o sujeito ao fazer as contas de quanto lucrará dando uma mãozinha, só uma mãozinha ao tráfico. - Vai todo mundo pro inferno mesmo! O que é que eu vou ficar fazendo sozinho no céu... Pois é. Todo mundo comprado. Parece aqueles filmes onde o mocinho descobre horrorizado que todos, simplesmente todos ao redor são cruéis alienígenas disfarçados e que não há saída.
O negócio da droga ilegal é o maior do planeta, movimentando bilhões e bilhões. As quadrilhas internacionais mexem também com pirataria de CDs e DVDs, armas, tráfico de órgãos, imigrantes ilegais... Elas movimentam mais dinheiro que um país inteiro. E os governos? Ah, sim, os governos. Bem, eles declararam guerra às drogas, claro. Que nome pomposo! Dá quase para ouvir as cornetas e os tambores. Quase posso ver os cidadãos marchando com seus estandartes, todos gritando, rumo ao campo de batalha.
Mas peraí. Quem vão combater? Os bandidos? Ou os usuários? Já sabemos que não adianta desmantelar as quadrilhas ou matar seu líder pois para cada um que sai de cena, há dez querendo entrar. Também não dá para prender todo mundo que fuma um baseado. Então talvez seja mesmo um combate à própria droga. Mas qual droga? E como se combate a droga? Fuzilando pés de maconha? Erradicando folhas de coca da face do planeta? E como lutar contra as drogas sintéticas, que sintetizam tudo em pequenas pílulas e que qualquer bunda-suja fabrica no quartinho do fundo da casa e transporta no bolso da bermuda?
E o cigarro? E o álcool? Por acaso não são drogas também e comprovadamente mais nocivas que um baseado? Ok, ok, não vamos falar disso agora senão a discussão vai se ramificar mais que o próprio tráfico. A questão primordial então não é como combater as drogas. A questão é: será mesmo possível combater algo que a própria sociedade deseja?
A guerra às drogas já nasceu perdida. Não sejamos hipócritas: o mundo quer as drogas, sempre quis. As sociedades sempre conviveram com as drogas, lícitas ou não, porque precisam delas. Então: se há demanda, sempre haverá oferta. Chegamos agora a um nível mais aprofundado da questão. Será que não estamos perdendo tempo, dinheiro e vidas tentando exterminar algo que nós mesmos não queremos que morra?
Não é um mundo sem drogas o que as pessoas desejam, até porque na prática seria impossível. E depois seria também injusto pois há os que fazem uso de drogas, legais ou ilegais, dentro de um limite saudável, sem prejudicar nem a si nem a outros. O que as pessoas verdadeiramente desejam é um mundo sem violência, isso sim. Mas as drogas geram violência, há quem diga. Não, o buraco é mais embaixo. Culpar as drogas pela violência é um julgamento injusto, fruto da histeria coletiva causada pela tal guerra às drogas. Isso é lógica reducionista. É caça às bruxas. O que de fato gera violência não é a droga em si mas a sua proibição, que automaticamente a liga à criminalidade.
Veja o caso da cerveja e do cigarro. Causam mais mortes que as drogas ilícitas. Mas ninguém os relaciona à criminalidade. Simplesmente porque são drogas abençoadas pelo mundo legalizado. No entanto, se fossem proibidas, haveria igualmente em torno delas toda uma rede de tráfico, corrupção, violência e crimes. Cientes disso e de que as pessoas beberão e fumarão sendo ou não proibido (veja o caso da fracassada Lei Seca), o que fazem os governos? Assumem a responsabilidade, fiscalizando produção e venda e cobrando impostos que são aplicados para manter controle sobre a qualidade, fazer pesquisas e campanhas educacionais, obter estatísticas e tratar dos males causados pelo mau uso. Melhor ter o controle de algo tão delicado e perigoso que deixá-lo nas mãos de bandidos.
A guerra às drogas é de uma ingenuidade risível. Os sócios do narcotráfico sabem disso. Gasta-se uma fortuna diária para manter a droga proibida e no entanto ela esta aí para quem quiser, na hora que quiser e diariamente somos violentados pelos que têm a droga e realmente mandam no pedaço. A guerra às drogas jamais funcionará simplesmente porque mira o alvo errado. O grande inimigo não é a droga: é a criminalização de seu uso.
RIO DROGA DE JANEIRO - 3a. parte
GUERRA ÀS DROGAS NÃO, ANTIPROIBICIONISMO SIM
Ricardo Kelmer - 2005
No inferno diário de péssimas notícias mantido pelo narcotráfico, há pelo menos uma a soprar uma brisa de esperança: o movimento antiproibicionista cresce em todo o mundo e dá seus primeiros passos organizados no Brasil. Ele prega a descriminalização de plantas e drogas e a regulamentação de seu comércio. E não admite que o estado tenha o direito de decidir o que você deve ou não fazer ao seu corpo ou à sua mente. Se você já entendeu que enquanto há proibição não há saída para o caos social, você é um antiproibicionista. Bem-vindo ao time.
É um tema espinhoso e polêmico. Difícil tocar nele pois é complexo demais, envolve tantas questões e pontos de vista diferentes... E, principalmente, envolve desinformação, preconceito e medo. Mas está ocorrendo algo curioso. A violência causada pelo comércio da droga ilegal alcançou níveis tão insuportáveis que a sociedade está sendo forçada, pela primeira vez, a encarar o problema de frente, sem hipocrisia. Não dá mais para varrer a sujeira, e o sangue, para baixo do tapete. O tapete do mundo já está vermelho.
Não adianta dizer aos usuários de drogas ilegais que eles alimentam o tráfico. É um argumento ingênuo pois significa culpar a natureza humana e sua busca natural por estados especiais de consciência. Se sempre haverá procura, sempre haverá quem forneça. Assim, se o Estado não assume as responsabilidades relativas à questão, alguém o fará. E se o Estado proíbe, a busca natural das pessoas obrigatoriamente descamba para o submundo da clandestinidade, da criminalidade e da violência.
A busca por estados especiais de consciência, através do álcool, gases naturais, plantas e técnicas meditativas, seja em contextos terapêuticos, religiosos ou recreativos, sempre fez parte de todas as sociedades. Por ser um anseio intrínseco à condição humana, proibir as pessoas de buscar esses estados não impediu que elas prosseguissem buscando. Aliás, o que se vê hoje é o aumento generalizado dessa procura, da qual o tráfico se aproveita, e muito bem, fortalecendo-se cada vez mais, infiltrando-se em governos e corrompendo quem surja à sua frente, desde policiais e advogados a políticos, juízes e religiosos, tomando o poder do Estado e fazendo suas próprias leis. E destruindo as sociedades, causando violência e terror.
Quem luta pela não-proibição compra briga não com a sociedade mas com o próprio tráfico, que é o maior interessado na proibição e sabe que deve mantê-la para manter seu poder. O tráfico sabe que as pessoas não pararão de buscar as drogas. Sabe também que o Estado, comprometido com a hipocrisia e o preconceito, evita sujar as mãos com a questão. O tráfico sabe mais que ninguém que o dinheiro compra tudo, inclusive o silêncio que mantém tudo como está. O dinheiro do tráfico financia inclusive o medo de se discutir o assunto. E nada muda. E as drogas sintéticas ficam mais baratas e acessíveis. E tudo piora.
A tal guerra às drogas já começou derrotada porque é sempre inglório lutar contra a natureza humana. Assim como a Lei Seca, o fim da proibição é questão de tempo. O que milhões de pessoas sempre pediram no mundo inteiro com argumentos sensatos e nunca foram ouvidas, se tornará realidade por causa da violência insuportável causada pelo tráfico. Não será uma transição fácil pois a sociedade terá antes que largar a hipocrisia e olhar de frente para um de seus piores fantasmas - e se isso já é difícil num nível individual, socialmente é mais complicado. Sim, droga pode destruir quem faz uso dela, claro, mas isso não pode ser motivo para proibir seu uso. O que você acharia se fosse proibido de beber sua cervejinha só porque seu vizinho se tornou um alcoólatra?
Quem tem a droga tem o poder. Não há saída para a sociedade a não ser tomar o poder do tráfico, legalizando as drogas e controlando seu comércio. Não precisamos de proibição. Precisamos é educar nossos filhos e prepará-los para um mundo onde sempre haverá drogas. Não precisamos de uma polícia da mente mas de democracia, direitos humanos e liberdades individuais. Precisamos de uma sociedade mais justa, com emprego para todos, e não de tráfico e muito menos de guerra às drogas. Precisamos é de amor ao planeta e à humanidade. Precisamos de paz.
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